Aqui estamos, nesta tarde, todos juntos lembrando Gilbert Zekveld, nosso amado pai, avô, irmão, tio e amigo.
Ao nascer, em uma fazenda perto do vilarejo de Aarlanderveen, no sul da Holanda, em 13 de janeiro de 1928, Gilbert recebeu o nome de Gijsbertus Zekveld. Ele foi o segundo de sete filhos. A maior parte de sua infância foi vivida nos anos da grande depressão e durante a sua adolescência a segunda guerra mundial assolou tanto as nações vizinhas como o seu próprio país, terminando um pouco antes dele ter idade para ser convocado ao serviço militar. Seu caráter foi forjado durante esses anos difíceis na medida em que ele observava como seus pais, tementes a Deus, agiam e reagiam com coragem às circunstâncias difíceis que os rodeavam. Assim ele aprendeu uma vida de frugalidade e de trabalho diligente na propriedade da família.
Ele foi um bom aluno e formou-se com louvor no curso técnico de agricultura que frequentou durante a guerra. Quando esta chegou ao final, entretanto, ficou logo evidente que não existia muito futuro para cinco filhos extraírem a subsistência daquela pequena propriedade, em um país que estava economicamente devastado. Assim, quando pessoas chegaram à Holanda promovendo a emigração, contando histórias fabulosas sobre as oportunidades existentes no Canadá, ele revelou o seu lado aventureiro. Em 1947, junto com o seu irmão Gerrit, subiram a bordo do navio Tabinta que os traria para uma vida diferente em Ontário, no Canadá. Ali encontrariam colinas e vales, em vez de planícies extensas; iriam incorporar outra língua e assimilar uma cultura diferente daquela que eles já consideravam como deles, para sempre. Na medida em que se tornavam independentes, no novo país, até os seus nomes foram mudados. Gijsbertus (ou Gijs) virou Gilbert e Gerrit tornou-se George.
George e Gilbert trouxeram, cada um, um baú de cedro que havia sido feito por encomenda pelo carpinteiro da cidade. É difícil, nesta era em que os nossos filhos, quando saem para estudar fora, enchem completamente duas grandes malas com suas coisas favoritas e, ainda assim, deixam a maior parte de seus pertences para trás, imaginar que apenas um daqueles dois baús estava cheio pela metade, enquanto que o outro veio vazio. Traziam, assim, tudo que eles possuíam no mundo: algumas roupas, dois pares de sapatos, suas Bíblias e seus livros. Livros! Mesmo sendo um fazendeiro na plena expressão da palavra, ninguém pode se lembrar de nosso pai sem fazer a conexão com livros. Centenas de livros, depois chegando aos milhares, cuidadosamente arrumados e catalogados; lidos, prezados e preservados durante os cinqüenta e cinco anos em que ele viveu em seu novo país.
Gilbert Zekveld demonstrou ser um trabalhador esforçado e fiel. Ele aprendeu tudo que era possível sobre a cultura agrícola na qual conseguiu emprego e sobre o negócio, em si, de administrar uma fazenda, no calor inesperado do verão canadense e no frio penetrante do inverno. O seu patrão canadense, John Hooyer, logo reconheceu sua competência e honestidade. Depois de alguns anos ofereceu ao Gilbert a oportunidade de gerenciar uma de suas fazendas, na cidade de Pontypool, província de Ontário.
Isso trouxe contentamento ao Gilbert porque, já nessa ocasião, ele havia encontrado e conquistado o coração de uma jovem holandesa muito especial, que havia chegado ao Canadá em 1949 – Geertje Buma – cujo “nome canadense” era Gertrude. Casaram-se em 14 de março de 1951. Em alguns anos já tinham cinco filhos para criar (Betty, Dennis, Nellie, Simon e George).
O espírito independente de Gilbert não o permitiria ser um empregado durante toda a sua vida. Cada centavo possível foi economizado e, em 1955, Gilbert e Gertrude se mudaram para uma fazenda recém-adquirida com a ajuda de um empréstimo bancário. Ela estava localizada na cidade de Janetville – local que seus filhos se recordam como sendo o lar da família. Isso foi um sonho tornado realidade. Agora ele voltava à vida que conhecera na Holanda – tirando o leite de vacas, trabalhando fardos de feno, plantando trigo e aveia. Na realidade, a situação era bem melhor do que na Holanda, porque a fazenda era moderna, com máquinas leiteiras, tratores e outros implementos agrícolas – coisas que aqueles que haviam ficado no país de origem ainda não haviam conseguido adquirir.
Não foi, entretanto, uma vida fácil. Diferentemente da Holanda, não haviam trabalhadores contratados para executar o trabalho. Isso significava que quer estivesse adoentado ou saudável; quer chovesse ou fizesse sol; a subsistência da família e a própria sobrevivência dependia da persistência e diligência no trabalho e das misericórdias divinas. Passamos por verões muito secos, invernos severos, máquinas que quebravam, doenças nos animais, acidentes, o leite com o preço desabando… Durante todo o ano dinheiro era economizado e separado com o propósito de possibilitar o pagamento anual devido pela compra da fazenda. A horta e os animais eram a fonte da maior parte da alimentação que era necessária, mas tanto as roupas como os brinquedos, e muitas outras coisas, eram comprados de segunda mão em duas excursões anuais àquilo que hoje chamamos de brechó. Todos os demais itens de necessidade eram comprados e anotados na caderneta de John Burns, em sua lojinha de Janetville. Essa conta era paga assim que recebia o pagamento mensal pelo leite coletado. Nunca teve crédito negado por aqueles que o conheciam e sabiam de sua honestidade holandesa cuja fama corria pela redondeza.
O início da década de setenta trouxe consigo um período de “vacas gordas”, quando tomou a decisão de deixar a criação de vacas e passar a ser criador de porcos e plantar milho. Nessa ocasião os filhos adolescentes já conseguiam prestar um auxílio considerável ao trabalho da fazenda. A fazenda cresceu de 100 para 200 acres e chegou a arrendar mais terra para o plantio de grãos. Assim foi possível para Betty, Nellie e George completar o curso universitário nos Estados Unidos. Betty casou com Solano e mudou-se para o Brasil, em 1974. Nellie casou-se com Chris em 1977, indo morar nos Estados Unidos. Nesse período Gilbert and Gertrude conseguiram realizar várias viagens e visitar familiares que moravam em lugares distantes, na Holanda, nos Estados Unidos, no Brasil e até na África do Sul.
Na medida em que “os meninos” se casavam e constituíam suas famílias, foi decidido que “Pa e Ma” iriam se aposentar. Mudaram-se para outra fazenda e Dennis e Simon deram continuidade às atividades na fazenda original. Após alguns anos, dos quais muito nos lembramos de queijos feitos em casa, galinhas com muitos ovos e uma profusão de penas de pavão, Ma começou a se sentir bem doente. Foi diagnosticada como possuidora de um câncer intestinal, sendo operada, a seguir. Depois de quase seis meses de uma hospitalização contínua, com várias cirurgias, conseguiu retornar ao lar, permanecendo por mais um ano com dificuldades de locomoção. Pa, posteriormente, sempre relembrava esse período como um dos mais preciosos de sua vida, dizendo: “fico muito feliz que Deus permitiu que eu tivesse mais aquele último ano com Ma”. Ele considerava um privilégio ter a oportunidade de retornar um pouco dos 35 anos de dedicação completa que ela havia dado a ele, cuidando dela e absorvendo muitas das tarefas que haviam sido realizadas por ela durante toda a sua vida. Cada dia vivido era visto como um presente da parte do Senhor e isso transparecia com muita evidência nas cartas que escrevia às suas filhas.
Mais tarde pudemos reconhecer que ele estava também sendo divinamente preparado para continuar a vida sozinho, tomando conta de si mesmo pelos próximos quinze anos. Sua amada Gertrude faleceu em julho de 1988 e ele ficou em uma casa que havia perdido a caracterização de um lar. Ele perseverou em seus deveres, mas muito da alegria de vida que anteriormente havia experimentado se esvaía. Restou uma sensação de solidão que foi progressivamente crescendo dentro de si. Suas tentativas de preencher aquele vazio nunca foram totalmente bem sucedidas. Entrementes, encontrou propósito e significado de vida entregando-se à tarefa de traduzir livros e artigos. Utilizou avidamente o conhecimento bilíngüe que possuía para transpor a barreira daqueles que conheciam apenas o inglês. Com isso tinha o objetivo de tornar disponível obras e ensaios que considerava preciosos e sempre atualizados, escritos por teólogos e pastores cristãos tanto do passado como contemporâneos. Uma das suas últimas traduções foi um livro que ele trouxe dentro daquele baú – um que lhe havia sido presenteado quando ele professou a sua fé em Cristo, quando ainda estava na Holanda.
Durante esses anos ele foi várias vezes a Tacoma, nos Estados Unidos, onde permanecia por alguns meses. Mudou-se várias vezes, no Canadá, e viveu nas cidades de Newcastle, Hamilton e St. Catherine’s. Nessas localidades travou conhecimento com várias igrejas e pessoas, construindo novas amizades. Finalmente mudou-se para a cidade de Lindsay, para ficar “perto dos meninos”. Depois de algumas complicações de saúde, com reflexos em sua capacidade de respiração, e depois de muita avaliação e oração, havia decidido seguir os conselhos médicos e submeter-se à uma operação do coração que estava programada para o início de 2003. Mas isso não chegaria a ocorrer. No dia 28 de dezembro ele nos deixou repentinamente. Mesmo que estejamos vendo o seu corpo, aqui, temos a certeza que ele está desfrutando de alegria nos céus, junto com Ma, seus pais, seu irmão George e tantos outros que já foram “para o Senhor, onde é bem melhor”. Não existe mais nenhuma sensação de solidão, agora!
Gilbert Zekveld foi um fazendeiro na expressão plena da palavra. Ele lavrava os campos, alimentava as vacas e tirava leite delas, limpava a pocilga dos porcos… Desde a madrugada até o anoitecer, dia após dia, ele se dedicava a essas tarefas.
Entretanto, Gilbert foi muito mais do que um fazendeiro. Ele era também um teólogo. Nunca aprendeu hebraico e grego e nunca freqüentou um seminário, mas sempre conheceu e procurou defender a sua Bíblia e a sua doutrina de uma maneira que poucos eruditos conseguem fazê-lo. Ele sempre esteve no seu elemento quando discutia questões teológicas – especialmente aqueles assuntos relacionados com a fé da Reforma, que ele tanto prezava. Ele tinha conhecimento das coisas do passado e era atualizado com o que estava acontecendo, temendo o que os teólogos andavam ensinando às gerações futuras, se não fossem controlados de perto. O pastor Jim Reaves escreveu uma carta de pêsames aos filhos e filhas de Gilbert na qual diz: “muitas vezes o ouvi dizer – ‘sou só um fazendeiro, criador de porcos’ – e eu sempre pensava que deveriam existir mais ‘fazendeiros, criadores de porcos’ como ele. Vocês possuem uma herança esplendorosa!”
Agora, enquanto contemplamos sua partida, paramos para avaliar essa “herança esplendorosa”. Ao lado de seu modelo como um homem dedicado à família – um esposo fiel e um pai zeloso – o seu maior legado para nós é a sua apreciação e reverência por este livro – A Bíblia. Ele nos ensinou que Deus revelou a sua pessoa e a sua vontade por intermédio das Escrituras. Ele lia a Bíblia em voz alta, para nós, em cada uma das três refeições.
Ele se certificou que aprendêssemos o catecismo e que tivéssemos a compreensão do caminho da salvação através da morte de Cristo na cruz por nossos pecados. Ele sabia de cor todos os 150 salmos, tanto em holandês como em inglês, e nos demonstrou, por seu próprio exemplo, como recorrer a eles, tanto nas ocasiões de alegria como nas de tristeza.
Convencido de que é o dever dos fiéis de se “congregarem” com o Povo de Deus, ele nos levou à igreja a cada domingo e exigia que aplicássemos os princípios bíblicos a todas as situações da vida – quer no lar, como na escola e na comunidade.
A sua expectativa era a de que nos tornássemos homens e mulheres de integridade, nunca se esquivando da verdade ou de suas conseqüências.
Ele nunca deixou de contribuir com o dízimo, mesmo nas épocas mais difíceis. Dez por cento de sua renda era automaticamente separado para o trabalho de Deus. Quando ele tomava conhecimento de necessidades de missionários ou de projetos específicos, enviava cheques pelo correio para essas causas.
Foi também um homem de fortes convicções, quer o assunto em discussão fosse na área política, religiosa, ou na de fazendas e técnicas agrícolas. Ele batalhava pelo que cria que Deus requeria dele próprio e daqueles que professavam conhecer a Deus, sem se importar com o custo pessoal que isso viesse a trazer. Algumas vezes essa postura gerou atritos exatamente com aquelas pessoas com as quais o seu relacionamento era o mais natural – seus parentes e os holandeses/canadenses. Isso às vezes o levou a procurar amizades e comunhão com pessoas que se encontravam fora de sua comunidade e igreja de origem. No final isso lhe abriu a visão em muitas maneiras e gerou oportunidades para que muitos, que hoje o relembram como um amigo amado, o conhecessem mais profundamente. Ele impactou muitas vidas, incluindo nesses muitos pastores, seminaristas e até muitos novos convertidos. Muitos desses descobriram que havia muito a se ganhar quando se “penetrava a fundo no cérebro de Gilbert”. Outros apreciavam a forma como podiam burilar os seus raciocínios e suas habilidades de debatedores, quando trocavam idéias com ele. Os seus genros teólogos sentiam-se intelectual e espiritualmente enriquecidos quando conversavam com ele. Os seus netos, na medida em que passavam da adolescência à vida adulta, firmando suas próprias identidades espirituais, estavam começando a se aperceber da riqueza existente nos pensamentos e nos livros de “Opa”, sempre interessantes e cheios de utilidade.
Por último, Gilbert era um homem de oração. Vamos sentir saudades do conforto que nos trazia saber que ele estava intercedendo, pelo nome, perante o Senhor, a cada noite, antes de deitar-se, por seus filhos, filhas, netos e netas. Ele solicitava as bênçãos do pacto da graça para cada um desses. Também orava por seus irmãos e irmãs, bem como pelos membros da igreja e por muitos outros dos quais se recordava durante os dias da semana. Diariamente confessava a sua fragilidade e pecaminosidade ao mesmo tempo em que permanecia deslumbrado sobre o amor de Deus, que, apesar de tudo, era derramado sobre ele, pedindo que Deus transformasse todas as coisas para o bem de si próprio e de seus descendentes.
Se seguirmos o seu exemplo nessas coisas, também ouviremos, no final, as mesmas palavras que ele finalmente escutou – “Bem está, servo bom e fiel… entra na alegria do teu Senhor” (Mateus 25.21)
Recife – 1º de janeiro de 2003