Crônicas do Cotidiano

Continuo com a série de postagens citando porções do “livro” da minha sogra para os netos, recordando partes da sua infância. Aqui ela fala de um empregado da família, cuja sintonia com Deus e com a natureza lhe rendeu uma outra preciosidade—amizade e carinho num mundo em que as pessoas, normalmente, não procuram nem cultivam afinidade e afetividade em relacionamentos com os “emergentes” na sociedade – “de cima para baixo”. (A “parte florida” encontra-se no meio do texto.)

Conheci Fonseca aos meus quatro ou cinco anos de idade. Ele era um negro alto, moço, talvez com uns 25 ou 30 anos de idade. Era magro e feio — rosto comprido, aparecendo os ossos da face — tinha um cacoete estranho — ao falar tremiam-lhe os lábios e músculos ao redor. Convertera-se a Jesus Cristo por uma das pregações de meu Pai, na Igreja Congregacional de Serra Verde. Ele trabalhava na casa do Sr. José Muniz, cuidando dos animais, junto com os filhos do patrão.

Passaram-se alguns anos e um dia o Sr. Antônio Muniz, quando já morávamos em São José do Sirigí, (Munganga), apareceu em nossa casa, viera nos visitar e para deixar Fonseca, trabalhando, em nossa casa, com meu Pai e minha Mãe. Ele fazia qualquer serviço! Fora criado por uma professora que só não conseguiu fazê-lo aprender a ler, nem a escrever. Aos catorze anos ele fugiu de casa e foi pra longe. Conheceu todas as cidades pequenas, dos arredores e as fazendas dos estados de Pernambuco e da Paraíba.

Minha Mãe não ficou muito feliz com a chegada daquele homem meio estranho para morar em nossa casa. Mas, como ele era crente, aceitou-o. Pai ainda passaria um ano ou dois pastoreando as duas Igrejas, uma em São José do Sirigí e a outra no sertão, em Juá e Serra Verde, até aparecer um pastor que cuidasse de uma delas. Morávamos, então, na vila e Pai aguardava a resolução da reunião da Convenção das igrejas, para saber aonde iria ficar.

Dali fomos morar em uma fazenda que ficava entre as duas distâncias dos dois campos de igrejas: Igreja de São José do Sirigí e a Igreja de Monte Alegre, localizada na vila de Pirauá. A fazenda era grande, mas estava abandonada. Pai arrendou-a por um ano e, no fim do ano, comprou-a.

Fonseca era o empregado de confiança de meu Pai — podia cuidar do seu serviço e olhar o que faziam os outros trabalhadores (…). Com as crianças maiores ele as levava para assar castanhas de caju e nos ensinava como partí-las sem as quebrar. Enchíamos tigelas e tigelas de castanhas assadas, descascadas e ele separava algumas daquelas para pisar e fazer farinha de castanha, enchendo os vidros que minha Mãe possuía e guardava para usar em bolos… Fonseca nos ensinava como tirar de nossas mãos o sumo das castanhas, o visco de jacas, quando ele abria as jacas maduras e tirávamos delas os bagos colocando-os nas travessas… Ele levava os meninos pra tomarem banho no açude, vigiando-os e ensinando-os a nadar. Ele não deixava que qualquer um de nós fizesse alguma coisa de errado em sua presença, e se fosse alguma coisa mais grave ele falaria à minha Mãe ou ao meu Pai. (Meus irmãos maiores não gostavam disso).

Mãe nos ensinava a respeitar Fonseca e tratá-lo muito bem. Certa vez meu Pai castigou meu irmão (com uns sete ou oito anos de idade na época) por este haver chamado um “nome feio” a Fonseca, chamando-o ainda de “negro metido”.

Eu gostava de ir vê-lo dar ração às vacas e prender os bezerros no curral deles. Ele me colocava num lugar alto e seguro e me dizia: “não saia daí”… Eu via, quieta, todo aquele trabalho… Eu gostava, também, de vê-lo ensinando aos meus irmãos a serrar capim para os cavalos e distribuir nos cochos ou quando ele dava a ração de milho com mel de furo para os animais.

Os cavalos eram levados para o açude para tomarem banho e beberem água, duas ou três vezes, por dia. Fonseca os levava junto com os outros empregados “Mané Magro”, um rapaz moço, e Severino, um pouco mais velho, que cuidavam de ajudar a Fonseca com os arreios e selas e cangalhas dos cavalos e burros.

Fonseca nos contava muitas histórias de outros lugares por onde ele andou e trabalhou, nas fazendas, dramatizando-as. Se a velha ou o velho morria na história em foco, ele imitava aquele personagem, caindo, chorando ou gritando, ou cantando ou sorrindo, etc, etc. Tornava assim as suas descrições em cenas vivas! Ríamos ou chorávamos… Fonseca era um ator! E um bom ator: ele só, fazia o papel de muitos… Cada gesto, cada palavra, cada som…

Ele não sabia ler, mas decorava os textos bíblicos, especialmente a citação – o número do capítulo e do versículo, no seu Novo Testamento e assim pregava o evangelho. Ele prestava muita atenção à leitura da Bíblia, no culto doméstico e aos sermões, na Igreja e gostava de assoviar os hinos enquanto trabalhava.

Fonseca sabia o quanto Mãe gostava de flores e de como ela cuidava do jardim. Ele ajudava neste trabalho. Quando viajava e via uma flor rara nos jardins de outras fazendas, conseguia uma muda daquela flor e trazia para Mãe.

Uma vez ele foi à mata pra encontrar um pau que Pai precisava e por lá ele viu uma árvore grande, cheia de pés de orquídeas roxas, floridas… No dia seguinte ele saiu muito cedo, levando machado, foice, facão e cordas e chegou ao local onde vira a árvore com as flores das orquídeas.

Já bem tarde Fonseca voltou da mata, trazendo aquela árvore desgalhada, só quase com o imenso tronco todo florido… Eu nunca vira coisa tão bonita! Como foi que ele pôde cortar, sozinho, aquela árvore, fazê-la cair sem machucar aquelas flores? Era a sua habilidade e o seu amor em tudo quanto fazia. Minha Mãe ficou deslumbrada!

Mais tarde ele cavou um fundo buraco, na cerca que rodeava o secador de café, ao arredor da casa e plantou, fincou, ali, aquele “poste florido”… Minha mãe e nós pensávamos que não daria certo, que o tronco imenso não “pegaria”, mas ele achava que iria “pegar”… E na verdade pegou… Ele fez mais: foi à mata, outra vez e encheu dois sacos de estopa, grandes, com pés de orquídeas brancas e roxas, floridos, e os trouxe para a cerca da frente da casa, amarrando-os nas estacas. O “poste” enorme comandava aquela fileira de orquídeas. Foi a casa mais enfeitada que eu vi com flores tão belas, naquela rústica casa de fazenda. Creio que foi o mais belo jardim que minha Mãe possuiu, de todos os que ela plantou por cada fazenda ou sítio por onde morou. Fonseca gostava do que era belo!

Fonseca não morou só com nossa família. Ele passava a metade do ano lá em casa, no verão e a outra metade nas outras fazendas por onde ele já trabalhara. Pois ele sofria de reumatismo e não podia passar o inverno em lugares muito frios. Assim ele revezava passando o verão conosco e o inverno no sertão. Lá em casa Pai cuidava de sua saúde, aplicando-lhe injeções quando suas dores aumentavam.

Quando já mais velho um médico lhe recomendou morar em Recife, experimentar um clima de praia. Ele veio então e arranjou um emprego como vigia de uma construção — Era uma mansão que estava sendo construída e quando terminaram aquele serviço, o dono convidou-o pra morar com eles. Ele nunca imaginara isto, pois aquele senhor não era crente, mas lhe disse que durante todo o período da construção, ele prestou muita atenção ao vigia, pois nunca chegou lá, fora de hora, pra Fonseca não estar no seu posto, atento a tudo. Aquele senhor era um alto comerciante em Recife e iria passar um ano inteiro com a família, na Europa e só viria morar na nova mansão na volta desta viagem e queria deixar na casa, toda mobiliada, alguém em quem pudesse confiar.

Dali em diante Fonseca ficou morando com eles, até quando morreu. Dona Arlete, a sua patroa, concedia a Fonseca os privilégios que ele gozava quando morava lá, na casa de meu Pai. Eu já era, então, casada, com o meu filho, com uns oito ou nove anos, morando aqui, em Recife. Fonseca nunca deixou de nos visitar e de estar conosco, com a nossa família, nos momentos tristes ou difíceis da nossa vida. E assim foi quando meu Pai faleceu. Ele viajou conosco pra Angelim e ficou ali, até voltarmos ao Recife.

O enterro de Fonseca foi um dos mais bonitos que assisti. Dona Arlete chegou a nossa casa às cinco horas da manhã, contando da sua morte, quase repentinamente. Ela o levara pra o hospital, no sábado à noite, e ele falecera, do coração. Pediu-me pra eu avisar ao Pastor da Igreja Congregacional, Rev. Arthur Pereira de Barros. A Igreja estava, em peso, no velório e no cemitério. Nunca eu vira tantas flores! E tantas lágrimas por pessoas que o conheceram, desde criança, como nós. Eu, porém, não chorei. Só pensava na alegria de Fonseca ao chegar no céu! A cerimônia foi tocante. E eu pensei: um homem pobre que ficou rico, desde o dia em que aceitou a Jesus Cristo, como o seu Salvador pessoal e que, desde então, era feliz e fez os que o rodearam felizes com ele.

“Bem está, servo bom e fiel, no pouco foste fiel, sobre o muito te colocarei, entra no gozo do teu Senhor”… (Mat. 25:23).

“Os santos receberão o reino”… (Daniel 7:18, 27; Apo. 22:1-5, 14; Mateus 5:3; I Cor. 6:9-11; II Tes. 1:3-12).

Graças a Deus pela fé dos seus servos fiéis.

Valderez

Este artigo foi publicado em 21 de abril, 2008. Está arquivado sob Amizade, Arte e Beleza, Blog, Crônicas, Flores e Plantas, Funcionário/Empregador, Gentileza no Trato, Memórias de uma Anciã. Você pode acompanhar os comentários a este artigo através do feed RSS 2.0. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback do seu próprio site.