“Não te tornes cúmplice dos pecados dos outros…” —1 Timóteo 5.22
Com a Bíblia aberta no colo, Isabel procurou se acomodar melhor no banco rústico. Estava num encontro de professores de Escola Dominical. Dois enormes ventiladores tentavam aliviar o intenso calor daquele fim de tarde. Olhou carinhosamente para a frente onde seu marido, de manga de camisa, valentemente procurava dar continuidade ao estudo da manhã. A mensagem de Neto era baseada em vários versículos das cartas do apóstolo Paulo a Timóteo. Enquanto acompanhava o raciocínio dele, seus olhos repentinamente caíram no versículo 22 do capítulo 5 da primeira carta. As palavras pareciam pular da página. O versículo já estava bem marcado na sua Bíblia, mas era como se o estivesse vendo pela primeira vez… Não te tornes cúmplice de pecados de outrem…
Isabel ouviu muito pouco da parte seguinte da mensagem. Sua mente imediatamente retrocedeu dois dias no tempo para uma situação constrangedora que ainda a perturbava. Logo depois do almoço, um rapaz amigo havia ligado dizendo que precisava conversar com ela com urgência. Meia hora depois ele chegou, bem vestido de gravata e camisa, mas agitado e ansioso. Silenciosamente, ela implorou sabedoria a Deus.
—Pai, não tenho noção qual possa ser o problema do Rafael. Mas deve ser algo sério para ele aparecer aqui assim, nervoso deste jeito. Por favor, me ajuda.
Rafael havia sido evangelizado por uma família da igreja e tornou-se amigo dos filhos adolescentes de Neto e Isabel. No Natal do ano anterior, havia perdido o pai. Aos poucos parou de freqüentar os cultos. No início, várias pessoas procuraram ajudá-lo a encontrar um emprego. Tinha um tio que era feirante bem sucedido mas o serviço pesado não lhe atraía. Rafael não pretendia se esforçar muito para receber pouco. Ele queria ganhar BEM. Experimentou algumas coisas mas logo saiu. Passou meses desempregado, sempre sonhando com um emprego igual ao que tinham alguns outros jovens conhecidos sem ter, entretanto, as mesmas qualificações acadêmicas.
—Sente-se, Rafael. Aceita alguma coisa para beber?
O rapaz balançou a cabeça enquanto se acomodava no sofá.
—Não, obrigado.
Isabel sentou-se na sua frente.
—Pode dizer, Rafael.
Rafael havia respondido a um anúncio sobre treinamento de vendedores. Contou a Isabel como havia conseguido vencer os obstáculos. De quatrocentas pessoas que haviam respondido ao anúncio, ele agora estava entre quinze lutando por oito vagas. Se conseguisse, seria promovido a supervisor de vendas recebendo acima de quinze “salários” mensais e um polpudo prêmio em dinheiro. Mas, para conseguir, ele teria que vender um plano de saúde antes das quatro horas da tarde, uma tarefa que lhe haviam dado no fim daquela manhã. As primeiras oito pessoas que ligassem com a venda concretizada estariam com o emprego (e, na visão dele, o futuro) garantido. Ninguém do grupo esperava conseguir essa venda com desconhecidos. Assim, alguns partiram com o propósito de juntar alguns parentes simpatizantes para comprarem um plano em nome de um deles. Para Rafael isso seria impossível. Assim, seu supervisor sugeriu que ele “arrumasse” alguém para fazer uma compra fictícia do plano de saúde, dizendo que essa era uma técnica muito comum. Isabel deveria, então, pagar a primeira prestação do plano (cerca de quatro “salários”), que posteriormente seria cancelada, e seu dinheiro seria devolvido dentro de poucas semanas.
Rafael sabia que a família de Isabel já tinha um plano de saúde mas dizia não saber a quem mais recorrer. Isabel ficou olhando para ele, tentando lidar com os sentimentos conflitantes dentro dela. Sentia ódio da entidade que lhe estava pressionando desta maneira… Estava impaciente com ele por não enxergar como estava sendo manipulado… Estava irritada porque ele deveria saber que a sua família zelava por uma vida íntegra… Tantas vezes no passado, ele havia participado do culto doméstico e ouvido as suas exortações aos filhos, e a ele também, sobre certas atitudes e ações… Agora estava prestes a mentir e enganar e, por cima, queria que ela participasse do seu plano!
Ao mesmo tempo sentia compaixão e uma enorme vontade de simplesmente fazer aquilo que ele tanto almejava. Ele tinha certeza que a sua assinatura naquele cheque milagroso mudaria a sua vida de vez. O filho desempregado e inútil se transformaria em um homem de negócios capaz de manter com dignidade a casa da mãe viúva. Bastava ela dizer “sim.” Rafael estava transtornado, lutando desesperadamente para manter a calma, querendo lhe convencer que aquilo seria um mero empréstimo e que daí em diante não lhe importunaria mais. Com este contrato e o prêmio na mão, ele não somente teria ultrapassado a etapa de ser um mero vendedor mas já seria um supervisor de vendas dum plano ao qual haviam supostamente aderido grandes bancos e empresas de porte.
Isabel viu o desespero e também a vergonha nos olhos dele. Lá no íntimo ele já desconfiava que ela iria dizer “não” mas, não obstante, continuava insistindo com uma esperança desesperada de que ela encontrasse um modo de burlar a sua consciência e resolver o problema dele. No começo, ela tentou argumentar contra o emprego em si, mostrando a possibilidade deles serem mestres de ilusão…, que a sua função como supervisor seria de encorajar mais moços bem intencionados como ele a pressionar outras pessoas da mesma maneira… Ele não ouvia. Já havia investigado, não era assim… Só seria desta vez… Isabel viu que não teria tempo para pensar numa maneira gentil de dizer “não”. Afinal, ele estava com pressa. Teria que ser assim mesmo, sem técnica, sem preparo…!
Respirando fundo, olhou bem nos olhos do Rafael:
—Rafael, você sabe que queremos muito o seu bem. Os meninos sempre oram por você no culto doméstico e se preocupam porque você tem faltado aos cultos. Temos orado pelo seu emprego. Mas eu não posso fazer o que me pede. Envolve mentira e engano. Não creio que é assim que Deus vai responder às nossas orações.
Rafael desviou o olhar e se levantou, abruptamente.
—É melhor eu ir embora, então.
Isabel colocou a mão no seu ombro.
—Sente mais um pouquinho. Vamos compartilhar este problema com nosso Pai celestial.
Relutante, ele se sentou novamente e ela, em voz alta, procurou as palavras para compartilhar o problema com Deus. Aí ele se foi, quieto, triste, de ombros caídos, os olhos cheios de mágoa e desespero. Faltavam duas horas até as quatro horas da tarde quando ele, novamente, estaria desempregado. Isabel ficou com o coração abatido. Será que ela estava certa mesmo? Não teria havido outro jeito? Ficou repassando a conversa mentalmente, reconhecendo que não havia compartilhado os preceitos de Deus diretamente da Bíblia, para que o Espírito Santo pudesse aplicá-los ao coração de Rafael.
Um versículo atrás do outro agora chegava à sua mente. Tarde demais… …Não vos entregueis a inquietações… vosso Pai sabe que necessitais estas coisas. Buscai, antes de tudo, o seu reino, e estas coisas vos serão acrescentadas; Seja o vosso sim, sim, e o vosso não, não. O que disto passar, vem do maligno; Deixando a mentira, fale cada um a verdade com o seu próximo; Não dirás falso testemunho… Abomino e detesto a mentira… *
Ao mesmo tempo, as dúvidas continuavam.
—Você afastou o coitado de vez. Perdeu todas as chances de influenciá-lo… Provou bem provado que você não liga o mínimo para o bem-estar dele. Pensa que ele vai acreditar que você só estava querendo seu bem? Para ele você estava era com medo de perder o seu precioso dinheirinho…
—Você não é perfeita, porque tinha que ser ‘santinha’ logo hoje?! Pensa que ele não vai achar que você é uma grande hipócrita? …
—Você poderia ter se arriscado. Nem precisava sujar seu nome. Poderia ter lhe emprestado o dinheiro e deixado que ele se entendesse com outra pessoa para fazer a apólice. Então ele teria saído com alguma esperança. Ainda se não desse certo, você não teria formado o último elo entre ele e a derrota. Já pensou se a infelicidade dele acabar em tragédia. A culpa será sua!…
—O que tem demais naquilo? Afinal, o fim pode justificar os meios. Com este “pecadinho” você poderia evitar pecados bem maiores conseqüentes da sua pobreza e frustração…
Agora, Isabel se ajeitou no banco e leu de novo a ordem de Paulo a Timóteo: “Não te tornes cúmplice de pecados de outrem”. Um alívio enorme tomou conta do seu espírito. Ela havia complicado tudo. O conselho de Deus, através de Paulo, era tão simples. Não deixava lugar para exceções. O versículo não continuava dizendo, “exceto quando pode custar o emprego de alguém”…
O som estridente de uma cigarra a trouxe de volta ao ambiente em que estava. Olhou ao seu redor. Várias pessoas estavam tomando nota e concordando com a cabeça. Ainda bem que nem todo mundo havia seguido o seu devaneio.
—Pai, sei que não é muito exemplar a mulher do preletor ficar distraída. Peço para que ninguém tenha se escandalizado comigo. De qualquer jeito, sou muito grata. O Senhor abriu meus olhos! Eu não teria sido uma generosa “benfeitora” ou “amiga”. Eu teria sido “cúmplice”!
Chegando em casa, Neto e Isabel compartilharam o versículo com seus filhos. Não te tornes cúmplice de pecados de outrem… ** Surgiu então o assunto de “dar cola” na escola. Eles logo concordaram que pedir ajuda ao colega numa prova não era honesto. Muito mais difícil era recusar-se a ajudar, especialmente quando o futuro do amigo parecia depender daquela prova. Debateram se este versículo se aplicava nestas horas. Concluíram que, realmente, os mandamentos de Deus não eram sempre fáceis de seguir. Mas a Bíblia lhes garantia que as conseqüências da sua fidelidade poderiam ser eternas. Leram Tiago 5.20: “Sabei que aquele que converte o pecador do seu caminho errado, salvará da morte a alma dele, e cobrirá multidão de pecados”.
Certo e errado. Errado ou certo. No mundo pós-moderno em que eles estavam sendo criados, já estavam descobrindo que, para a maioria das pessoas, o único “pecado” ainda reconhecido era o de insistir na existência do certo e do errado…
Daí em diante, Isabel continuou preocupada com Rafael mas não teve mais dúvidas. Diante de Deus, havia feito a coisa certa. Não sabia se a revolta dele iria passar.*** Se ele, um dia, realmente entregasse a sua vida nas mãos de Deus, então poderia compreender. A única coisa que poderia fazer era continuar orando por ele. Ao mesmo tempo, pediu forças e sabedoria a Deus para que, quando novamente fosse convidado a participar de algo que não lhe agradasse, pudesse reconhecer o mal e confrontar a situação corajosamente, deixando as conseqüências imediatas e eternas nas Suas mãos. Quase havia sido cúmplice…! E você e eu…?
março de 1997
Publicado na SAF em Revista, 4º Trimestre / 2000
* Lucas12:29-31; Mateus 5:37; Efésios 4:25; Êxodo 20:16; Salmo 119.163
**Outra versão do Novo Testamento diz, “Não participe dos pecados dos outros” (NVI)
***Rafael conseguiu a falsa apólice com outra amiga e foi um dos oito supostos “classificados.” Uns meses depois, ele voltou à casa de Isabel e Neto. Compartilhou que a função prometida não havia sido bem igual à que foi recebida. Revoltado com a falta de sinceridade e veracidade daquela empresa, havia pedido demissão…
Complemento 02-04-2009
Hoje vi esta notícia na Terra, na Internet. Fez-me lembrar do incidente acima. Fico imaginando quantos familiares e amigos se sentiram constrangidos ao ter que recusar ajuda e quantos outros (que ajudaram ou compraram) foram lesados… Multa neles! Cadeia neles!
http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI3676662-EI5030,00-Golpe+do+falso+emprego+pode+ter+lesado+em+SP+diz+policia.html
Golpe do falso emprego pode ter lesado 500 em SP, diz polícia
02 de abril de 2009 • 12h34 • atualizado às 14h41
Carteiras de trabalho usadas pela quadrilha foram encontradas em empresa de fachada
Hermano Freitas/Terra
Direto de São Paulo
O golpe do falso emprego fez pelo menos 200 vítimas e pode ter lesado até 500 pessoas desempregadas, informou nesta quinta-feira a polícia de São Paulo. Segundo o delegado do Setor de Investigações Gerais da Delegacia Seccional Centro, Fernando Schmidt de Paula, empresas de fachada mudavam de nome e de endereço para explorar pessoas em busca de emprego. “Estimamos em mais de 200 as vítimas, podendo chegar a 500”, disse o delegado.
A polícia prendeu nesta manhã 12 pessoas, sete mulheres e cinco homens, acusadas de terem aplicado um golpe que consistia em obrigar interessados em um emprego a vender um cartão de descontos em centros de estética e consultórios médicos. Segundo a polícia, eram estabelecidas metas impossíveis de cumprir para que os desempregados fossem efetivados.
Cada cartão custava em media R$ 1 mil e, no desespero por conseguir um emprego, as vítimas usavam o dinheiro de familiares e até contraíam empréstimos. A delegada do 3º Distrito Policial, Elizabeth Galvão, explica que os interessados eram recrutados através de um anuncio em classificados de jornais que ofereciam vagas de representantes de vendas e auxiliar de vendas.
A proposta era que fosse vendido determinado número de cartões-afinidade para que os interessados conseguissem emprego. Para dar aparência de verdade ao golpe, a quadrilha obrigava os lesados a assinarem contratos e até a entregarem a carteira de trabalho, que nunca era assinada. “Não temos noticia de que alguém tenha conseguido a vaga”, disse a delegada.
A empresa que está no vértice do esquema é a Infinity, que produz os cartões. A polícia instaurou 100 inquéritos para apurar as responsabilidades pelo golpe.