Crônicas do Cotidiano

Numa postagem prévia, contei que compartilhava a minha paixão pela leitura da Série Mitford com uma amiga, agora falecida, a Wanda de Assumpção. O meu respeito por Wanda começou com a leitura dos seus livros. Escrevi para ela quando fiz uma resenha do Conte Comigo para a revista acadêmica Fides Reformata (em 1999). Mas era exatamente na época em que ela mudou de casa e minha carta nunca chegou ao destino (e nem voltou!) Eu apenas soube disso quando ela mesma tomou a iniciativa de escrever para mim, em fevereiro de 2004, depois de ler a crônica “Não Batam no MEU Ladrão!” na revista das mulheres presbiterianas. Eu respondi e logo descobrimos uma grande empatia. Teclamos sobre muitos assuntos ao longo de três anos, mas, especialmente, sobre aconselhamento de mulheres e a arte de escrever.

Resolvi procurar entre os e-mails arquivados no meu computador para descobrir comentários ligados a Mitford nas nossas trocas de correspondência. Penso que as observações e reflexões dela possam complementar o meu declarado fascínio por estas histórias. Escrevemos muito sobre o que é literatura, o dom da boa escrita, conteúdo e forma, etc. Talvez, mais à frente, eu poste algo a partir das nossas conversas relacionadas com esses assuntos, mas, no momento, vou me limitar a Mitford, mesmo.

As cartas do fim de 2005 em diante são do período em que ela recomeçou o tratamento do seu câncer (quimioterapia). Nessa ocasião é que ela iniciou uma nova releitura da série, que já conhecia.

Novembro de 2005
Cara Betty:
(…) Amo a maneira como vc escreve as histórias da Isabel. Ela me faz querer ser uma crente mais fiel, mais dedicada.

Estive pensando que esse seu dom seria ideal para escrever romances do tipo da Jan Karon. A gente vê tanta coisa ruim nos livros e filmes, tanta gente sem o mínimo padrão de decência – especialmente nas nossas novelas, que são o principal entretenimento dos brasileiros – que acaba indo para o fundo do poço. Aí, quando lemos ou vemos pessoas falhas mas redimidas, buscando algo mais elevado em suas vidas, vendo o mundo por outra perspectiva, a esperança volta. A gente sente um calor, um ânimo por dentro e fica inspirada a prosseguir na nossa carreira cristã. (…)

Um grande e carinhoso abraço de sua irmã em Jesus,
Wanda

15 de janeiro de 2006
Querida Betty:
Sua vida e seu estilo de contar os eventos dela realmente me fazem lembrar muito a Jan Karon! Estou acabando de ler o último livro dela, A Light from Heaven (“Uma Luz do Céu”—ainda não existe no português—nota de Betty) e estou deixando as últimas páginas para depois, postponing the pleasure (adiando o prazer). Aliás, é o único tipo de leitura que estou com coragem para fazer. Nada que precise de raciocínio, de concentração. A coisa toda é agradável, flui pela gente como uma brisa agradável e animadora. Os trechos são curtos e dá para parar a qualquer momento. Mesmo as coisas mais profundas são fáceis de absorver (….) Um grande e carinhoso abraço, no amor Daquele que nos amou primeiro,
Wanda

17 de janeiro de 2006
Querida Wanda:
(…) Ah, como eu gostaria de escrever como Jan Karon! E agora estou com inveja. Você tem o último livro dela! Eu nem sabia que existia! (…)

18 de janeiro de 2006
(…) Se vc quiser, Betty, mando o último livro da Jan Karon para vc ler. Minha filha mais velha o havia começado e acho que ela vai querer terminar, mas depois disso, posso mandar para vc, com o maior prazer. Quando falei antes sobre o estilo dela, … o que realmente quis dizer é que ela fala coisas profundas, fala de uma fé vivida à flor da pele, em que Deus está envolvido em cada detalhe da vida da gente. Reverendo Tim vive o que prega e prega através de sua vida. E isso acaba afetando todas as pessoas com quem ele convive. Essas coisas profundas são apresentadas de forma gostosa, normal, corriqueira e entram direto para o coração da gente, vc não acha? (…)

03 de maio de 2006
Querida Betty:
(…) Estou levando o livro Light from Heaven para vc, Betty. Também reli a série toda este começo de ano. Quando não estou passando muito bem, esses livros são a única coisa que me ajuda a sentir melhor. Resolvi ler de novo para aprender um pouco mais a respeito do que me faz gostar tanto do que a Jan Karon escreve, mas acabei esquecendo disso e deixando as histórias capturarem a minha atenção de novo. Então, acho que terei de ler outra vez! ;-)) Só vou dar um tempo…. Wanda

12 de junho de 2006
Querida Betty:
(…) Entendo o que vc falou a respeito de forma, de melhorar a apresentação de uma idéia, esclarecendo e enfeitando o texto com literary devices. Vejo a Jan Karon fazer muito isso. Ela usa bastante as comparações, as metáforas e isso enfeita muito e esclarece o que ela diz. Isso requer trabalhar o texto, né? E requer também muita leitura de bons autores que já fazem ou fizeram isso, pedindo a Deus que nos dê discernimento para entender o que é verdadeiro e bom no que estamos lendo. (…) Wanda

10 de dezembro de 2006
Oi, Betty:
Foi muito bom falar com vc ontem. Obrigada por ligar.
Acho que o nosso gosto em livros e filmes é bem parecido. Tenho o Shepherds Abiding e acabei de reler. Também já li muita coisa da Erma Bombeck, quase todos os que vc mencionou e gosto muito do modo como ela encara as dificuldades da vida.

Eu já havia lido a respeito de um homem que também achou que o riso seria uma ajuda importante nessa fase da vida quando a gente está passando por tratamentos difíceis. Obrigada pela oferta do kit-diversão (…) Como eu disse, nosso gosto é bem parecido pois já vi quase tudo o que sugeriu e tenho algumas das coleções, inclusive Anne of Green Gables, uma de minhas favoritas (…). Wanda

08 de janeiro de 2007
Como suas cartas são especiais! É como ler um pouquinho de Jan Karon, em outra realidade. Vc tem o dom, minha irmã. Obrigada por compartilhar um pouquinho destes seus dias de ano novo…. Wanda
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A Wanda faleceu cinco meses depois (ver aqui e aqui). Até hoje, penso nela quando leio ou reflito sobre as coisas nas quais compartilhávamos interesse e prazer (como Mitford). E sinto saudades daquilo que chamávamos o nosso kindred spirit— uma expressão que pode ser traduzida por “gostos afins”, ou por “espírito solidário”, mas que significa bem mais do que isso. Representa um sentimento raro, de sintonia e aceitação, que fazia com que pudéssemos falar qualquer coisa sem temer que a outra pessoa fosse interpretar mal ou ficar magoada. Ainda bem que tenho meu marido (que me ama e ouve e quem lê e avalia tudo que escrevo) mais alguns outros preciosos parentes e amigos com quem interagir…

Betty

P.S. Enquanto isso, já estou no meio do terceiro livro. O Reverendo Tim casou-se e está, por um lado, extremamente feliz e, por outro, sofrendo enquanto se adapta a novos hábitos de convívio. Está aprendendo a fazer sua esposa sentir-se valorizada e amada, em meio a variados desafios e triunfos enquanto lida com as velhas e novas personagens da sua igreja e da comunidade de Mitford. Na terça-feira, volto ao cirurgião para uma avaliação e para tirar os pontos e já-já, imagino, não terei mais tempo para terminar a re-leitura da série… Mas valeu enquanto durou.

Este artigo foi publicado em 3 de maio, 2008. Está arquivado sob Blog, Série Mitford, Wanda de Assumpção. Você pode acompanhar os comentários a este artigo através do feed RSS 2.0. Você pode deixar um comentário, ou fazer um trackback do seu próprio site.