2007. Antes de chegar ao fim de janeiro, quero compartilhar uma espécie de febre que sempre me aparece no início deste mes — o primeiro do ano — aquele dos novos começos e resoluções. No meu caso, depois das festividades do fim de dezembro, me dá vontade de limpar, arrumar, re-organizar… Chega a hora de guardar a árvore, as decorações, os cartões, o papel, os laços… E, mais ainda, os presentes—especialmente, porque meu aniversário também foi em dezembro. É lá vou eu, esvaziando e ajeitando guarda-roupas, cômodas e armários, para acomodar tudo que recebemos.
Uma vez que começo, parece não ter mais fim. Primeiro vem os produtos de beleza. É impressionante como consigo juntar um monte de produtos que não servem para mim ou para meu marido (ou que são deixados para trás por nossos filhos ou parentes ou pelos hóspedes que passam por nossa casa–e eu sou bem simples—quase tudo que uso pode ser encontrado na farmácia da esquina!) O local dos produtos de beleza e higiene pessoal está encostado ao das sobras dos remédios. Então vejo as validades deles e procuro criar espaço para os novos que certamente virão. Aí vem um amontoado de caixinhas e vidrinhos, guardados porque “ainda podem servir para alguma coisa”… E as centenas de sacolas de plástico e de papel… Depois vêm as roupas. E lá vou eu, examinando, testando, avaliando, lavando, remendando, redobrando. Ao meu lado, fica uma caixa que vai se enchendo, pouco a pouco. Sobra uma satisfação dupla—tanto por ver o ambiente limpo e organizado, quanto pela oportunidade de alegrar outras pessoas com as coisas que nos são supérfluas ou inúteis.
Quando eu era menina e moça, numa fazenda no Canadá, algo parecido acontecia na primavera. Enquanto o inverno e a neve reinavam, as mulheres quase que hibernavam. Ainda cozinhavam, lavavam e passavam, mas tudo sem pressa. O frio e a neve as impediam de se movimentarem livremente dentro e fora de casa. (Hoje em dia as residências têm aquecimento central, mas naquela época apenas a nossa enorme cozinha era aquecida—e a sala de estar quando chegavam visitas.)
Mas era só a temperatura subir e a neve começar a derreter, que uma estranha febre parecia atacar as mulheres que eu conhecia. Para as canadenses era spring cleaning time. Para as imigrantes holandesas era hora do voorjaarsschoonmaak (ambas expressões significam “faxina de primavera”). Isto resultava em trabalho para a família inteira mas não achávamos ruim. Era tempo de renovação. De rever tudo o que era velho e avaliar se devia ser jogado, dado, preservado ou usado. O cheiro de naftalina permeava o ar. Vinha das bolas novas que eram inseridas entre as pesadas roupas e objetos de inverno que seriam guardados (depois de lavados). Também emanava das caixas que saíam do sótão, cheias de vestimentas de tecidos e cores leves e alegres, que iam todas para o varal para arejar. Deste processo surgia a oportunidade de sair para adquirir roupas para substituir aquelas que não serviam mais. Nunca eram novas, pois vinham do brechó de uma cidadezinha próxima, mas pelo menos eram diferentes…. Estas compras eram esperadas ansiosamente por mim e por meus irmãos porque sabíamos que a nossa única chance de obter trajes e acessórios (sapatos, cintos, bolsas, adornos pessoais) mais modernos, como também brinquedos, era nesta hora.
Minha mãe, como holandesa, levava esta faxina tradicional muito a sério. Cada dia atacava um cômodo novo. Os armários eram esvaziados; os colchões e cobertores iam para o sol; portas, paredes, janelas, até o teto—tudo era lavado. Todos os filhos ajudavam e ai de quem fizesse algo relaxadamente! De algum modo esta enorme tarefa tinha que ser encaixada entre os primeiros dias de degelo e o momento em que seria possível começar a trabalhar a terra para plantar a horta e as flores que ela tanto amava. Ainda se nevasse de novo, ela não parava até a casa toda estar limpa e brilhando, por dentro e por fora. Nas conversas telefônicas com minhas tias, compartilhavam as conquistas diárias. Pareciam competir entre si para ver quem terminava primeiro…
Eventualmente, eu vim para o Brasil. Logo para o litoral nordestino onde, de quatro nítidas estações, pulei para duas—uma de chuva e outra de menos chuva (ou seca). Aprenderia a apreciar muitas coisas nesta minha nova terra, mas não havia mais aquele dia demarcador—de alegria e expectativa quando ouvíamos o som da neve derretendo-se em água e escorrendo pela ladeira ao lado da casa, e quando percebíamos que as pontas inchadas dos galhos das árvores desnudas que a ladeavam assinalavam o re-nascimento das suas folhas e a futura chegada de flores e frutas. Dava uma enorme sensação de bem-estar.
Agora, quando alguém me pergunta sobre qual a coisa de que mais sinto falta da minha vida pré-Brasil, imediatamente me vejo mocinha, subindo aquela ladeira a pé, parando para rodar de braços abertos, cabelos soltos na brisa e sem agasalho, sentindo uma intensa satisfação e leveza, inteiramente sintonizada com o processo de renovação da natureza através do cenário, sons e cheiros que me cercavam. Havia esperança no ar. Uma esperança envolta em certeza. Certeza de que Deus era um ser fantástico e que, mais uma vez, o verão chegaria com tudo que era belo, bom e saboroso.
Aí eu entendia o anseio da minha mãe—seu desejo ardente de fazer com que a parte interna da sua casa, tão escura, sombria e fechada durante os longos meses de inverno, fosse renovada e refrescada para harmonizar com a transformação que certamente aconteceria na natureza no exterior dela.
Agora moro em São Paulo. Isto pode surpreender, mas nesta, a maior cidade da América do Sul, a minha vida não é restrita a uma “selva de pedras”. Todo dia, eu me alegro com evidências da beleza da criação. Acordo com o canto do sabiá e de outros pássaros enquanto beija-flores e periquitos se revezam nas plantas do meu terraço. Quando abro a janela do meu quarto, posso tocar nos galhos de uma enorme seringueira, logo no sexto andar! E quando olho para baixo, meus olhos se deleitam com a variedade de cores das flores que abundam nos jardins dos prédios. De fato, a exuberância e encanto da natureza, que minha mãe e eu esperávamos com tanta ansiedade nas primaveras do passado, agora fazem parte do meu dia-a-dia, o ano todo.
Entretanto, apesar de termos um período de frio, as estações continuam indistintas. Não existe aquele dia em que sinto e sei—a primavera chegou! Assim, não posso observar mais a tradição que as mulheres do continente europeu transportaram para a América do Norte. Mas, quando minha casa se esvazia depois do Ano Novo, quando os parentes e hóspedes partem e as férias terminam, então descubro, ano após ano, que me é impossível meramente guardar as coisas que foram tiradas para uso, ou simplesmente enfiar os presentes recém-recebidos.
Mas porque agora? Talvez seja exatamente porque esta época é considerada o tempo de novos começos. As pessoas fazem resoluções para mudar a aparência e o rumo dos mais diversos aspectos da sua vida. E eu também. Como cristã, procuro examinar a minha vida e verificar quais as áreas em que ainda sou falha e preciso melhorar.
Ao mesmo tempo, a sensação de gratidão pelo presente divino que comemoramos no Natal ainda permeia o ambiente. Portanto, enquanto encaixo as coisas que acabaram de chegar, nos lugares em que devem ficar, eu re-examino as outras que já estão aí, uma por uma. Vejo quantas coisas Deus tem me permitido. Tanta abundância! Algumas delas continuarão me sendo úteis. Sei que deverei usá-las neste ano de 2007. Umas trazem memórias de pessoas queridas, momentos especiais, sonhos realizados. Outras lembram ocasiões difíceis, incidentes embaraçosos, situações tristes. Ainda outras não me dizem mais nada. Só ocupam espaço…
Quando vejo aquela quantidade de pertences, sinto uma enorme urgência de me desfazer de algumas delas. Uma urgência que, quando atendida, resulta em grande satisfação. É bom, em primeiro lugar, ver tudo limpo e re-organizado, fácil de encontrar. Mas não é apenas isso. É uma oportunidade a mais de trazer alegria para algumas pessoas, permitindo-lhes conforto, alegria, elegância ou mais dignidade.
Eu mesma me lembro de um curto período na minha vida, que começou quando eu tinha mais ou menos oito anos. A maioria das pessoas da nossa igreja era composta de famílias de fazendeiros holandeses, todas lutando para sobreviver num novo mundo. (Ninguém vivia em miséria. Não havia desemprego. A gente comia bastante e bem. Tínhamos carne, leite, ovos, verduras, legumes, frutas… As casas eram adequadas.) Mas os pais de família passavam o ano inteiro juntando dinheiro para fazer a prestação anual das fazendas que haviam comprado. Raramente sobrava dinheiro para comprar algo novo. Entretanto, se nós, crianças, reclamávamos, imediatamente ouvíamos histórias sobre como tinha sido difícil durante a guerra, e nossos pais nos asseguravam que vivíamos em tempos de grande fartura.
Entretanto, o organista da igreja morava na cidade onde a igreja era localizada. Ele mancava de uma perna, e não sei como ele se sustentava, mas me lembro que a casa dele parecia uma mansão. E a sua filha, Willy, alguns anos mais velha que eu, vestia-se como uma princesa. Num domingo, na época desta famosa faxina, a mãe dela pediu para meu pai tirar várias caixas do carro deles. Quando chegamos em casa, minha mãe, que já sabia de que se tratava, me chamou para ver o conteúdo. Eram roupas, sapatos, meias, brinquedos—tudo para mim. Como eu fiquei contente! O que mais me alegrou foram as meias coloridas. Creio que ainda não existia o brechó nesta época e quem fazia as minhas meias (tricotando) era a mãe do meu pai. E ela só fazia meias marrons, pretas e cinzentas! Se tivesse sorte, eram azul marinho! Só! Eu implorava para minha mãe pedir a ela comprar lã colorida, mas não tinha jeito. Ouvia coisas como “cavalo dado não se olha os dentes” e pronto. Creio que minha avó achava que eu ficaria vaidosa se usasse meias coloridas.
Por dois ou três anos, tive o prazer de saber que a mãe da Willy havia me escolhido para receber as roupas que tinham se tornado pequenas para ela, sempre na primavera. Mas chegou o ano em que fui informada que eu agora era maior de que Willy e que outra menina iria receber aquelas caixas que já considerava minhas por direito. Me lembro como me senti boba por não ter notado este fato tão aparente. Fiquei muito triste. Felizmente, a minha avó já havia encerrado a sua carreira de tricotar meias e não precisei retomar este “sofrimento”.
Enquanto me lembro disto e de outros momentos parecidos, lá se vão sapatos e sandálias, cintos e bolsas, blusas, agasalhos, calças, camisas, gravatas, objetos de decoração e de cozinha… O perfume caro que me faz espirrar (antes que perca a validade)… O condicionador para cabelos que comprei por engano. As bijuterias que não combinam com meu jeito de ser… As dezenas de canetas e pastas que meu marido recebe nas conferências… Aquele monte de agendas que ele ganhou no fim do ano. Afinal, ele só usa uma, e eu outra…
Uns poucos itens têm um valor sentimental tão grande que este supera a possível utilidade que possam ter para os outros e eles voltam para as gavetas, ano após ano. Mas, pouco a pouco, sacolas e caixas se enchem e acabam sendo encaminhadas aqui e ali… Nem todos saberão de onde vieram. Normalmente chegam ao seu destino via outras pessoas que podem usá-las para refletir o amor de Deus aos vizinhos ou aos parentes que estão evangelizando. E nenhum deles vai desconfiar que o prazer que eu senti durante o processo de escolha pode ter sido bem maior do que o deles!
E quando eu abro as minhas gavetas e armários, e vejo tudo inteiro, arrumado e limpinho, aí me identifico, mais uma vez, com o zelo da minha mãe naquele primeiro sinal da chegada da primavera. Bem que eu gostaria de poder dizer isto a ela…
Betty
Muito legal seu texto, muito gostoso de ler.
Estou precisando fazer um lima desses lá em casa antes de começarem as aulas, o estranho é que apesar de ter ciencia disso eu sempre consigo convencer minha esposa a deixar isso pra depois, e assim vão se formando montes de coisas inuteis para mim e minha esposa.
Seu texto me convenceu de que há essa necessidade, pois com isso as coisas ficam organizadas, e pessoas são abençoadas.
Deus lhe abençoe.
http://alexsandrooliveira.blogspot.com/
Daqui a quatro meses vc ajudará sua filha a fazer o maior “spring cleaning” da vida dela!!! Ainda bem que vc tem bastante experiência!