Oh! Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos! –Salmo 133:1
Isabel folheava a pilha de questionários que havia trazido da igreja. Seus olhos percorriam os comentários: Parabéns ao Rev. Eliseu pela idéia magnífica!… Ganhei mais duas amigas em Cristo…. Se precisarem de novo, podem contar conosco…. Agora, pessoas de um outro estado estão orando pela salvação do meu marido…. Sempre quis conhecer o Rio e agora já tenho onde me hospedar…. Nunca ri tanto!… Comovida, pensou—“Quando será que vou aprender? Novamente o Senhor abençoou, apesar da minha relutância e pouca fé.”
Sua mente voltou no tempo….
O pastor Eliseu dava alguns avisos –Vamos festejar o 35º aniversário da igreja no mês que vem. Para celebrar, o Conselho convidou o coral de uma igreja do Estado do Rio para cantar. Chegarão em um ônibus com umas quarenta pessoas.
Isabel escutou atenta e pensou: –Ih, vai dar confusão. Ainda bem que eu não tenho nada a ver com este abacaxi.
Mas o pastor continuou,—Por razões de saúde, estarei afastado por algum tempo e, assim, estou nomeando o Vice-Presidente do Conselho para tomar as providências para o recebimento e a hospedagem deste coral.
O vice, pego de surpresa, caminhou em direção ao Pastor. —Vou precisar de ajuda feminina, pensou. Olhando os bancos da frente, falou, –Nomeio Naná, Mikako e minha esposa Isabel para formarem a Comissão de Hospedagem.
Isabel baixou a cabeça para ninguém perceber que a sua reação não refletia exatamente o “espírito manso e tranqüilo” da esposa descrita por Pedro…. Mikako também pensou: –Sobrou pra mim. Naná resmungou no seu íntimo: –Por que fui inventar de concorrer à presidência da SAF?!
No outro domingo, começaram a campanha para obter os hospedeiros, cada uma falando com pessoas conhecidas. No fim do dia, juntaram os resultados. Uma família poderia acomodar um casal, e outra pessoa queria hospedar uma amiga que viria no grupo. Só! Umas iriam viajar no feriadão, outras estavam recebendo parentes e outras alegavam problemas familiares ou financeiros. As críticas, também, não demoraram:
—Por que a igreja inventou de buscar um Coral tão longe quando São Paulo está cheio de corais lindos?!
—Que desperdício fretar um ônibus, quando a igreja está tentando comprar o terreno ao lado!
—Seria bem melhor trazer colchonetes para as pessoas ficarem na igreja, enquanto a SAF prepara as refeições…
Desanimadas, viram que, contando suas próprias casas, haviam conseguido lugares para apenas dezesseis pessoas; e as outras vinte-e-quatro?
Enquanto isto, lá no Rio, o pastor Daniel foi incentivando o pessoal do Coral a participar do passeio e, alegremente, enviou a lista com os nomes dos que viriam. Quando o FAX chegou na casa da Naná, ela quase desmaiou. Ligou para Isabel. –Bel, diga p’ro seu marido que não vai dar! A gente pensava que viriam 40 pessoas. São 61! Vêm mais dois carros, fora o ônibus!
Neto não se abalou. –Podem ir orando e confiando, sem agonia, porque vai dar tudo certo. As três oravam, mas com muita pouca fé. Tinham certeza que já haviam esgotados os seus poderes de persuasão e a capacidade hospedeira da igreja.
No próximo domingo, Neto foi novamente para a frente. Não reclamou da atitude de ninguém, nem fez um apelo longo. Simplesmente avisou que o número de pessoas precisando de um lugar para ficar havia aumentado e que ele iria ler o que Deus havia colocado na Sua Palavra sobre a oportunidade de hospedá-las. Da sua voz, pausada e clara, a igreja ouviu:
Compartilhai a necessidade dos santos, praticai a hospitalidade.—Romanos 12:13
Não negligencieis a hospitalidade, pois alguns, praticando-a, sem o saber, acolheram anjos.—Hebreus 12:13
Ele já havia colocado uma folha enorme no quadro de avisos. Tinha três colunas: “QUEM VEM?” “QUEM VAI HOSPEDAR?” e “POR QUÊ?”. No lado esquerdo estavam os 61 nomes, agrupados por família, sexo e idade. O lado direito foi tomado pelos três versículos. No meio, estava o lugar para as pessoas colocarem seus nomes. Para o espanto das três mulheres, no fim daquele dia, todos os espaços estavam preenchidos! Aquelas palavras, aparentemente simples, mas inspiradas e aplicadas pelo Espírito Santo nos corações da congregação, mudaram a situação por completo. Uma “senhora murmuradora” correu para o salão de trás para ser a primeira a colocar o nome na lista, após ouvir a Palavra de Deus. Algumas pessoas não haviam sido abordadas e estavam apenas esperando pela oportunidade. Pela fé, outras enfrentaram seus temores e entregaram nas mãos de Deus a simplicidade das suas casas, a falta de um veículo próprio, a reação dos seus familiares, seu possível constrangimento… Era maravilhoso! Parecia que essa parte do quebra-cabeça havia sido montada.
Mas, ainda, faltava muito. As três mulheres mantiveram contato quase diário durante o mês seguinte. Toda vez que falavam com Pastor Daniel, havia modificações na lista. No lado dos visitantes, uma listada como “solteira” era, na verdade, mulher de um diácono. Outra senhora, operada às pressas, foi substituída por dois rapazes. Informaram que os “carros” não viriam, mas depois decidiram vir novamente. No lado dos hospedeiros, uma família desistiu por causa de um acidente de automóvel. Não era fácil manter a calma durante essa verdadeira confusão enquanto se telefonava para um e outro tentando trocar casais por senhoras, moças por rapazes, adultos por jovens… Quase todos da igreja agora estavam procurando entrar no projeto de alguma maneira. Não havia mais desespero e murmuração.
Os irmãos faziam consultas. Qual deveria ser o menu? Ficaria feio colocar alguém no chão? (Dúvida especialmente daqueles que hospedariam famílias inteiras.) Fizeram faxinas, colocaram ou lavaram cortinas, prepararam os quartos (desocupando camas, desalojando filhos e até a si mesmo). Alguns fizeram reformas—uma senhora se alegrou por ter colocado o boxe no banheiro—após 17 anos de espera. Outros saíram para comprar colchões, travesseiros, toalhas de banho, xícaras, pratos, copos, sabonetes perfumados; guarda-roupas foram esvaziados e preparados para os hóspedes… Com estas preparações, todas as pessoas das famílias acabaram participando.
Outros membros se envolveram, emprestando colchões e objetos variados, oferecendo apoio na alimentação e no transporte…. A grande preocupação de muitas senhoras era o preparo das refeições e lanches. Queriam deleitar o paladar dos seus hóspedes, mas viam-se obrigadas a gastar pouco. Trocaram receitas, planejaram cardápios, fizeram e refizeram listas para feira e supermercado. Para algumas famílias, seria uma aventura culinária (com resultados variados) e uma oportunidade para criatividade e aprendizado.
Finalmente, o Coral chegou. Após a viagem noturna, receberam um farto café e fizeram um passeio, com jovens da igreja paulista servindo de guias. Retornaram ao meio-dia, cansados e ansiosos para irem às “suas casas”. Sentados entre as malas, ao lado da igreja, ficaram esperando, torcendo para que cada nova pessoa que passasse pelo portão fosse a “sua”, enquanto Isabel e Pastor Daniel liam os nomes dos hóspedes que “pertenciam” àquela que chegava. Em pouco tempo, a igreja se esvaziou.
Nas reuniões daquele fim-de-semana, o Coral e seu pastor contribuíram muito para as festividades. As pregações foram uma bênção. Houve solos, duetos, coral infantil, louvor liderado pelos jovens… Deus foi glorificado, o povo foi edificado, o aniversário foi celebrado…
Na segunda de manhã, feriado de Tiradentes, hóspedes e hospedeiros se reuniram na igreja. Juntos ocupavam mais da metade do templo. Paulistas e fluminenses, que três dias antes nem se conheciam, agora se entreolhavam carinhosamente enquanto braços passavam por cima de ombros.
O pastor deu oportunidade aos que quisessem dar as suas impressões. Esperava-se que o encerramento e as despedidas viessem logo. Grande engano. Durante uma hora e meia, uma pessoa atrás da outra falou. Cada uma queria fazer com que as outras soubessem das bênçãos recebidas por causa desta convivência que, no início, havia parecido tão constrangedora. Quando os hóspedes falavam, faziam questão de chamar as suas “famílias” para a frente para que todo mundo da sua igreja pudesse saber de quem estavam falando. Uma vez lá, estas, por sua vez, não podiam deixar de compartilhar os seus receios iniciais e quais as maneiras em que Deus havia-lhes ajudado e abençoado. Muitos falavam abraçados, sem receio de demonstrar o afeto que sentiam. Algumas pessoas haviam implorado a Deus para não serem colocadas numa casa de “ricos”. Muitos hospedeiros haviam pedido o inverso—que Deus não lhes enviasse pessoas de um nível social mais elevado. Foi uma das maiores manifestações de amor fraternal já vistas na igreja.
O Coral se despediu em meio a muitos abraços e lágrimas. Partiram 62 pessoas. Para trás, ficaram mais de cem. Não havia nenhuma modificação externa nelas. Mas, internamente, houve mudanças, sim. Quase todos ficaram intrigados com o amor tão profundo que havia brotado entre eles num espaço de tempo tão curto. Para mais da metade, era a primeira vez que haviam hospedado alguém que não era seu parente ou conhecido. E agora, naquele questionário, alguns estavam procurando entender e avaliar o que havia acontecido. —Gostamos da simplicidade dos irmãos convivendo com a nossa pobreza….
—Meus filhos estranharam em ceder seu quarto. Agora já perguntam quando virá o próximo “Coral”….
—Por que será que eu me senti mais irmã de uma pessoa “estranha” do que do povo da minha própria igreja?….
Um jovem seminarista comentou—Sugiro que procuremos abrir nossas casas também aos irmãos da nossa igreja. Não conheço muitos dos membros….
Isabel escreveu um relato para o jornalzinho da igreja. Procurou avaliar por que a maioria dos relacionamentos na igreja era mais superficial que aqueles formados entre hóspedes e hospedeiros naquele fim-de-semana.
—A resposta parece ser que é dentro do contexto das nossas casas que relacionamentos duradouros são consolidados. Eis aí o desafio, irmãos. Vamos continuar passivos, esperando, ano após ano, o dia em que teremos “condições” para convidar irmãos para almoçarem ou jantarem conosco? Vamos continuar aguardando um convite formal ou “tempo livre” para fazer uma visita? Ou vamos procurar e agarrar oportunidades para conhecer e amar melhor os irmãos da nossa própria igreja?
O “Coral” veio. Cantou. Encantou. Foi embora. Uma experiência rápida, mas linda e profunda. Os irmãos da igreja continuam conosco. Vivem, sofrem, se alegram. Ontem, hoje e amanhã. Uma experiência bem mais longa. O que podemos fazer (coletiva e individualmente) para torná-la igualmente linda e profunda?
… Aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê –1 João 4.20
Publicado na SAF em Revista, 1º Trimestre / 2003